“Apenas 10% da elite artística sindical dominava 78% da verba da cultura”, diz André Porciúncula
Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, o baiano André Porciúncula não poupa críticas ao que ele chama de elite artística sindical do país. Nessa entrevista exclusiva ao A TARDE, ele diz que havia uma distribuição de renda aleatória na Cultura, onde 10% desses artistas dominavam 78% da verba do setor, e mais, sem prestar contas. Para ele, não “há nenhum tipo de esvaziamento dos processos na Cultura”, mas sim, uma nova dinâmica na liberação dos recursos. “Encontrei na Cultura um passivo de 20 mil projetos e mais de R$13 bilhões não auditados”. Capitão da Polícia Militar, o braço direito do secretário Mário Frias diz que “com os pequenos artistas a relação está ótima. Eles nunca tiveram acesso à cultura”. Porciuncula aproveita ainda para anunciar que “serão injetados quase meio bilhão para empréstimo no setor”. Confira:
Como tem sido o trabalho à frente do órgão, ao longo desse um ano e meio?
É um trabalho bastante desafiador, é um trabalho difícil, as exigências burocráticas e políticas que envolvem a cultura, realmente tudo é elevado à décima potência. E a gente vem desenvolvendo aos pouquinhos, mudando, tentando fazer esse processo de moralização. Mas, em contra partida, é satisfatória a ideia de estar fazendo algo útil para o país, é algo que enriquece bastante sim.
Como você avalia a política cultural do governo Bolsonaro? Como o governo enxerga a arte no Brasil hoje?
Primeiro, pela primeira vez no Brasil, podemos falar em política cultural. Nunca houve antes. Eu falei isso na comissão de cultura da Câmara, causou espanto, mas pra mim é algo muito simples. Políticas públicas se fazem com dados, métricas e análises. E o que a gente encontrou aqui foi uma completa ausência de processos de análises, de auditoria de processos e não há como se fazer política pública sem isto. Eu não tenho dados para respaldar uma decisão em nível estratégico que possa me orientar a desenvolver um plano a ser seguido para implementar essas políticas. O que se fazia antes na Cultura era a distribuição de renda aleatória, jogava para cima naquela pequena elitezinha sindical que dominava os mecanismos públicos de fomento à cultura, e esses 10% dominavam 78% da verba da cultura e não havia prestação de conta, não havia nenhum tipo de cuidado, sequer de saber se aquele produto incentivado foi de fato realizado e entregue à população. Então, pra mim, o governo Bolsonaro está criando um novo paradigma, iniciando uma política pública cultural, de fato, que nunca houve. E sobre as artes, sim, ao contrário do que a pecha negativa traz, o Governo Bolsonaro acredita que a cultura e arte são importantíssimos, eu costumo dizer que a cultura é a alma do povo, ela precisa ser irrigada naquela trindade litúrgica própria, arte, literatura, música. E não há civilização, não há nem a ideia de povo sem cultura. Há apenas animais bípedes andando aleatoriamente pela rua. Então é a cultura que traz o próprio processo civilizacional, então o governo encara essa cultura como algo muito importante para preservar esses valores milenares que formam nossa cultura. As pessoas misturam dar importância à cultura e distribuir gordas verbas públicas àquela pequena minoria que dominava os mecanismos de fomento.
Você é apontado como braço direito do secretário Mário Frias, com quem divide a atuação da Lei Rouanet, e tem sido alvo de muitas críticas, inclusive, por enterrar projetos. Qual a orientação do governo sobre a legislação e como você avalia esse processo?
Primeiro que não há como enterrar projetos, porque os projetos são públicos, há um procedimento, regras, leis, então isso é narrativa política pura e simples, não há nenhum tipo de esvaziamento dos processos na Cultura. O que houve foi o que eu falei: cheguei na cultura, tinha um passivo de processos culturais não auditados de 20 mil projetos, perfazendo um total de mais de 5 milhões de páginas, em termos pecuniários, R$13 bilhões não auditados, e esse era um gravíssimo problema. Porque quando falo de auditoria, não falo de auditoria financeira, de saber se aquela nota fiscal foi emitida em acordo com o serviço prestado. Eu estou falando se o serviço, se o objeto foi entregue. Então eu estou dizendo que sequer analisou, o cara pegou o dinheiro na cultura, pegou R$20 milhões, R$10 milhões, disse que ia fazer um show. Não há sequer a análise se esse show foi entregue. O cara disse que ia fazer uma exposição de arte, pegou R$5 milhões aqui. Não houve por parte da administração pública o cuidado de ver se essa exposição foi entregue. Então o que a gente fez, primeira coisa, tínhamos vários acordos no TCU, o TCU falou: essa situação não pode continuar assim. E fizemos um equilíbrio simples, razoável, de equilibrar a entrada de novos projetos com a nossa capacidade de auditoria. Isso não é enterrar projeto, isso não é barrar a cultura do país. Isso é trazer para a administração pública preceitos básicos de gestão. Então eu não posso aprovar um projeto que eu sei que eu não serei capaz de auditá-lo. Se eu não sou capaz de auditá-lo, eu não sou capaz de medir a eficiência desse projeto, os impactos sociais desse projeto, as entregas culturais desse projeto. Então auditoria não é simplesmente financeira, há um amplo âmbito de gestão institucional que é necessário auditoria para poder alicerçar a decisão do gestor e produzir política pública. E é justamente por isso que eu digo que não havia política pública. Então a gente não enterra projeto nenhum, isso é narrativa política pura e simples de quem estava acostumado a pegar dinheiro aqui aleatoriamente sem nenhum tipo de prestação de conta mais apurada. E é a raiva, a irritação, a reação raivosa de todo processo de moralização. Todo processo de moralização contraria interesses e isso é normal, esse tipo de narrativa nada mais é do que isso.
Você chegou a dizer que a aversão à nova Lei Rouanet era mais espiritual do que política. Há muita politização nesse assunto, André?
Há sim. Por exemplo, o novo decreto que acabou de ir para o Supremo, os partidos de oposição, para variar, os perdedores tentando governar através do ativismo judicial, entraram com uma ação para declarar inconstitucional o decreto novo da Rouanet. Qual foi o ponto polêmico do decreto? A gente trazer arte sacra. O patrimônio cultural da arte sacra no Brasil é riquíssimo. Tanto no aspecto de valor pecuniário, como no aspecto de valor cultural. É óbvio que era um ponto necessário, era óbvio que precisávamos de um especialista nessa área. Isso não era nem pra ser um critério de polêmica. Mas a aversão espiritual, essa raiva de Deus, do cristianismo e desses valores transcendentes é tão grande que isso é transferido para a disputa política. Esse era um ponto pra mim que era pra ser pacífico. Arte sacra é um produto espetacularmente importante para a nossa cultura e precisava de um ponto de apoio. Em contrapartida, os aspectos excelentes de desburocratização do decreto foram deixados de lado. Então, antes de mais nada, essa revolta egofânica, essa revolta do ego contra Deus, por isso que eu trouxe essa expressão.
Em uma postagem recente no seu Instagram há um card onde se pergunta “o que você comprava na época do governo Lula e agora com o governo Bolsonaro você não consegue comprar mais”. E você responde nessa postagem falando que é a elite sindical artística. Como você se relaciona com a classe artística?
Primeiro ponto, eu não gosto, eu nunca uso essa expressão, não uso o termo “classe artística”. Eu não acho que o conjunto de pessoas que desenvolvem cultura podem ser aglutinados num conceito de classe. É muito plural, é muito diverso, muito rico, muito amplo para ser reduzido nessa expressão de classe. Isso por si só já é uma denotação ideológica. Então eu já sou completamente avesso à denominação de classe artística, que normalmente é um truque retórico para lidar com meia dúzia dessa elite sindical, aí sim eu acho que existe uma elite sindical arrogante que arvora a si mesmo a condição de representantes da arte e da cultura do Brasil. Eles não são. E aí eu gosto de fazer essa diferença. Com os pequenos artistas, pequenos agentes culturais, a relação está ótima. Eles nunca tiveram acesso à cultura. A grande verdade é essa: eles nunca tiveram acesso aos mecanismos de fomento à cultura. A gente rompe o monopólio dessa elite sindical e leva cultura para o homem comum. A gente devolve para as praças, para as pequenas vilas, pequenas cidades. A gente traz a cultura pro seu verdadeiro dono, o povo. Então óbvio que essa elite sindical artística arrogante não gosta muito de mim, nem do presidente, nem do Mário. Porque perderam o monopólio do domínio da cultura, os mecanismos públicos da cultura, que numa linguagem vulgar que se usa, na expressão popular de que “perdeu a mamata”. O que era a mamata? Esse clientelismo sindical, essa ideia de que a cultura, como órgão, era um sindicato de classe. A cultura não é um sindicato de classe. Não estou aqui para servir uma classe. Estou aqui para servir ao povo. Óbvio que a expressão geral dos artistas é muito importante para o processo da cultura. Mas nunca na ideia de que a Secretaria de Cultura é um sindicato e que deve servir a essa classe artística que nada mais é do que um truque retórico para ignorar que quando a gente trata de classe artística a gente está falando de meia dúzia de grandes artistas multimilionários que arvoram a si a condição de representantes dessa pluralidade riquíssima de pessoas que produzem cultura.
Você falou aí dos grandes artistas e também dos pequenos que estão inclusive tendo dificuldades para se manter ao longo da pandemia. De que forma o governo federal têm olhado, têm voltado suas atenções para essa parcela da sociedade?
Primeiro ponto, eu preciso repudiar veemente a política criminosa de destruição econômica dos meios de sobrevivência. A ideia de que se trancar pessoas saudáveis dentro de casa e impedir que elas ganhem o sustento de cada dia seria algo positivo ou próspero para combater um vírus. Isso é um absurdo, isso foi criminoso e foi o que acarretou esse estado com nossos pequenos artistas. Dito isso, o Governo Federal, não só a Secretaria de Cultura, vem tomando algumas atitudes para poder mitigar os impactos dessas decisões absurdas e equivocadas e criminosas que violaram direitos civis, violaram liberdades individuais, destruíram emprego, destruíram vidas. Eu acho que dentro do âmbito da Secretaria de Cultura, o primeiro grande impacto foi a aprovação da Lei Aldir Blanc com o auxílio emergencial para os pequenos artistas. Houve mau uso da Lei Aldir Blanc também, eu preciso registrar, principalmente a parte de editais, muito mau usada por alguns estados, editais absurdos, mas houve um grande impacto ali na parte de assistencialismo para os pequenos artistas, o que foi positivo. Nós estamos lançamos aqui também um auxílio emergencial para os pequenos produtores de cinema e agora vou até antecipar aqui, deve estar saindo nas próximas semanas, dependendo da agenda do presidente, estamos terminando de oficializar toda a parte burocrática de R$480 milhões, quase meio bilhão, para empréstimo de baixo valor, baixo juros para incentivar o mercado cultural para que esses pequenos artistas, médios e grandes, qualquer um, possam pegar esse empréstimo e tenham cinco anos para pagar, dois anos aí de carência, baixo juros. É uma forma de injetar dinheiro no mercado e conseguir fazer com que essas pessoas consigam sobreviver um pouco mais com suas pequenas empresas, até mesmo com sua própria pessoa física desenvolver isso. Então, será muito importante a injeção de quase meio bilhão para empréstimo na Cultura.
Nas redes sociais você é muito ativo e já se mostrou, inclusive, fã de Olavo de Carvalho e crítico da política do isolamento. Isso te coloca mais próximo da ala radical e ideológica do governo?
Primeiro que o termo radical é uma expressão meio vazia. O que é radical, quando você traz o radical para o dia a dia, como se fosse uma qualificação absoluta por si só. Por exemplo, o cara é radicalmente são? Sou. Eu sou radicalmente honesto? Sou. Então radical de que forma? Em que aspecto? Porque radical por si só não é bom nem ruim. Ele só é um adjetivo de intensidade. E aí até se você vai para a origem etimológica do termo radical, que vem de raiz, as raízes mesmo dos valores da sociedade, se você entrar nesses valores, eu sou. Agora se você me perguntar “você é radicalmente louco?” não. Não sou. Então depende de que aspecto você emprega o termo radical. Sobre Olavo, eu o admiro como filósofo, não tenho problema nenhum de dizer isso, não tenho nenhuma vergonha, inclusive, faz parte do truque retórico da esquerda trazer a pecha de radical a todos aqueles que estão para fora do espectro político da esquerda. Então há o que a gente chama de “teatro das tesouras”, então qualquer um que fuja daquela falsa polarização entre esquerda e esquerda mesmo é imediatamente classificado como radical para trazer a ideia pejorativa de que é desequilibrado. Eu me pergunto quantas pessoas do PCdoB, ou do pessoal, partidos que defendem revolução armada, defendem ditaduras pelo mundo afora, foram classificados como radicais pela mídia maestra, eu nunca vi isso. Então eu não me considero radical ou não, depende do qualificativo, não da intensidade. Então se for radicalmente são, sim. E Olavo para mim é o maior filósofo brasileiro vivo, então não tenho problema nenhum em admitir isso. Li seus livros, gosto muito da sua forma de escrita, e não tenho problema nenhum em dizer isso. Assim como gosto de vários outros autores.
Como você vê os tensionamentos do presidente Bolsonaro e os outros poderes, sobretudo o Judiciário?
Olha, eu não posso falar sobre a relação do presidente com os outros poderes. O que eu percebo das relações é que o presidente é o sujeito que mais preza por diálogo, está sempre reforçando que vai jogar dentro das quatro linhas, está sempre reforçando a importância da Constituição, da legalidade, da ordem. Então o último lugar que vocês poderiam ter medo ou preocupação para surgir aí algum tipo de tirania, algum tipo de desrespeito à ordem constitucional é dentro do Poder Executivo com o presidente Bolsonaro que já se mostrou várias vezes um grande defensor da nossa Constituição, do nosso ordenamento jurídico.
Você é capitão da Polícia Militar, acredita que as Polícias estão divididas e poderiam apoiar uma eventual ruptura institucional no país?
Eu na condição de capitão digo tranquilamente que os valores que norteiam a base da Polícia Militar são os mesmos valores das Forças Armadas: hierarquia, disciplina e preservação da ordem legal.
Pra finalizar, novos editais, novos acessos? Quais os próximos passos na Cultura?
Sim, vou te dar um furo de notícia. Próximas semanas vamos publicar a regulamentação de um decreto em que estará previsto que os grandes patrocinadores, quando aportarem dinheiro em uma grande obra, terão obrigatoriamente que patrocinar um pequeno agente cultural que nunca teve um projeto patrocinado. Você vai forçar a pulverização do patrocínio. Você vai sempre pegar um iniciante e dar oportunidade a ele. Então é o que a gente chama de trazer a cultura para o Brasil profundo, difundir, popularizar, pegar esses pequenos agentes culturais e trazer para os mecanismos de fomento que eles nunca tiveram a oportunidade. Como eu falei antes, 78% da verba da Lei Rouanet ficava com os 10% dos grandes proponentes e eram sempre esses mesmos grandes proponentes com os mesmos grandes patrocinadores. Temos que impedir essa concentração e forçar a pulverização na cultura.
Fonte: A tarde