De onde vêm os Dourados de Irecê? O Correio do Sertão faz parte dessa história.

História de amor entre plebeu e rica ‘garota Dourado’ está na origem da cidade

Todos os Dourados que conheço – embora uns eu não queira ver nem pintados de ouro – são de Irecê, cidade logo acima da Chapada Diamantina onde passei um São João inesquecível, em 2009. Direi o melhor (e os amigos que estiveram comigo irão concordar), para efeito de indicação e motivação de escrita sobre as antigas Carahybas, hoje.

Sempre tive curiosidade de saber o porquê de tantos Dourados, em Salvador, vindos de um mesmo canto, e aí lembrando da famigerada festa joanina, me pus a investigar essa ‘coincidência’.

Segundo o professor e escritor Adélio Dourado, a origem do clã está numa espécie de ancestral comum, que atendia pelo nome de João José da Silva Dourado, um mui rico herdeiro, depois latifundiário, que comprou uma fazenda batizada de Lagoa Grande – e Grande é só apelido.

“Suas terras correspondiam ao que veio a se tornar municípios como América Dourada, João Dourado, Lapão, Ibititá, Presidente Dutra, Jussara, São Gabriel, além da própria Irecê. É provável que ele nem tenha conhecido toda a fazenda”, calcula o professor, que é autor do livro ‘Família Dourado – Descendentes de João José da Silva Dourado’, sobre a história da formidável família.

O nome Dourado tem mesmo tudo a ver com o minério, neste caso de Jacobina e região, no piemonte da Chapada. Era lá que vivia Mateus Nunes Dourado, descendente de portugueses, avô de João José. 

Também atraído pelo ouro, JJ foi morar em Macaúbas, e lá teria passado os últimos anos de existência, cuidando de fazer vários douradinhos, e estes outros tantos. A Lagoa Grande nesse período – meados do século 19 – era pouco povoada, mas a partir dos anos 1870 os descendentes do patriarca resolveram fazer a volta da asa branca e tomar ‘posse’ da fazenda. 

“Eles começaram a desbravar a propriedade, a explorar, encontraram água, e ali alguns passaram a habitar. Como a família era grande, exploraram a fazenda em diversas localidades”, comenta o professor sobre a ‘diáspora’ voluntária.

Destacam-se nesse desbravamento três nomes da família: Terêncio, Tiozinho e Renério, que vão investir principalmente em gado e na agricultura – embora o feijão não tenha sido o forte, inicialmente, só ganhando força no decorrer do século 20.

“Estas terras eram férteis. E perto do rio, muitos da família residiram por muito tempo ali”, conta a professora Liriam Dourado França, destacando que a Fazenda Lagoa Grande se estendia desde o Rio Verde, afluente do São Francisco, até o Riacho Romão Gramacho, em terras hoje pertencentes a América Dourada.

No início do século 20, Irecê (ou Carahybas, ou Villa, como os mais antigos se referiam ao povoamento) pertencia a Morro do Chapéu, distante 100 km, e esse distanciamento não permitia que a localidade se desenvolvesse da melhor forma, incluindo aí a dificuldade em registrar a própria história dos Dourados e demais famílias que ali viviam. 

“As condições estruturais não possibilitavam as pessoas a desenvolverem escritas, pois até elas mesmas frequentavam poucos dias de escola na América ou no Morro do Chapéu, viajando a cavalo”, cita ela.

Garota Dourado
Essa corrida, a galope, por melhores condições de vida, quem vai comandar é o avô da professora, que não era um Dourado, mas passou a ser na tora. Trata-se de José Alves de Andrade, o Zuza Mó, um dos fundadores de Irecê, que nascido numa família pobre teve a ousadia de se apaixonar pela rica e cobiçada (pelos primos) Ana Joaquina de Castro Dourado.

Ousadia porque, como toda a região sabia, os Dourados não se misturavam com bijouterias, ou seja, só se casavam com outros Dourados ou gente de famílias igualmente tradicionais, informação que é fundamental para compreender como o sobrenome se tornou tão forte por ali.

“No início, era difícil pra alguém casar com um Dourado. Tanto fazia se fosse mulher ou homem. E na família Dourado quem decidia o casamento eram os pais, não era a pessoa. Tinha essa tradição, mas depois as coisas foram mudando. Entraram os Castro, os Barreto, os Moitinho, tudo casando com Dourado e virando Dourado também”, explica o professor Adélio.

E foi com a faca nos dentes que o virtuoso (porém pobre de marré) Zuza Mó conseguiu ser um dos primeiros a conseguir tal feito. “Meu avô chegou aqui vindo de Brotas de Macaúbas e se encantou por minha avó, que era Dourado, e major Aristides (pai dela) demorou muitos dias para dar o consentimento para que eles se casassem. Depois de várias reuniões na América Dourada, com vários membros da família, foi que o casamento se realizou. Ele (Zuza) deu exemplo de sabedoria e bondade”, conta a professora Liriam, orgulhosa.

Jornada do herói
A saga de Zuza Mó é tão famosa e cultuada que virou até filme, lançado no ano passado pelo cineasta Kel Dourado, também descendente direto do fundador de Irecê.

“É bem provável que Zuza Mó tenha sido o primeiro homem não Dourado pobre que se casou com uma mulher Dourado. O contrário acontecia, mas mesmo assim não com tanta frequência. Ouvi dizer que era para não dividir herança, patriarcado, machismo… Imagine Irecê em 1906. Zuza furou a bolha e, depois disso, as próximas gerações se misturaram com outras famílias”, descreve Kel.

O filme ‘Zuza Mó’, claro, é inspirado na história real da princesa e do plebeu, tendo essa questão da bolha familiar na base do roteiro. “Sem dar muito spoiler, imagina uma moça rica, Ana Joaquina Dourado, de 16 anos, que acaba de ficar órfã de pai e mãe, em 1906, aqui no interior. Ela não poderia ficar solteira, e nessa disputa de poder, nome e dinheiro, Zuza venceu com a honra”, antecipa o cineasta, que já fez exibições do filme em praça pública com mais de mil pessoas em duas sessões. A obra, que recebeu R$ 10 mil de incentivo da Lei Aldir Blanc, deve ficar disponível ao público assim que terminar de circular os festivais.

História e política
Um dos atores do longa é o ex-prefeito de Irecê, Zé das Virgens, que também é um Dourado e descendente direto de Zuza e Ana Joaquina. Não que ele seja uma exceção. 

“Dos 20 prefeitos que tivemos, nove eram Dourados, três casados com mulher Dourado e oito nem Dourado nem casado com uma mulher Dourado, só pra gente ter noção de como é a disputa política aqui”, comenta Kel, que é responsável, junto com o professor Adélio, por corrigir a data histórica de fundação de Irecê, em decisão aprovada pela Câmara de Vereadores em 2020.

Dez anos antes, o cineasta encontrou num recorte do Jornal Correio do Sertão a indicação de que no dia 2 de agosto de 1926 Irecê deixava de fazer parte de Morro do Chapéu. “O aniversário da cidade se comemorava na data de restauração da emancipação política [31 de maio]. Se é uma restauração, existe alguma história anterior sendo ocultada”, raciocinou Kel, pouco tempo antes de ter acesso a 10 gigas de arquivos do Correio do Sertão, reunidos pelo historiador Bruno Pimenta. 

“Ele me passou essa relíquia, onde encontramos a fonte segura do 2 de agosto como emancipação política, e a data de comemorar o aniversário, sem excluir agentes e fatos históricos. A data foi modificada e corrigimos um erro crasso”, contou Kel, que teve o professor Adélio como parceiro na missão gloriosa de devolver a primazia da fundação de Irecê aos Dourados e agregados.

[Essa coluna é dedicada a Lélia Dourado e Saulo Dourado, amizades ireceenses].

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